ÍndiceIntrodução de Franco VolpiEdições das obras de Schopenhauer utilizadasCronologiaA arte de conhecer a si mesmoMáximas e citações preferidasFontes
Introdução de Franco Volpi 1. Conhece-te a ti mesmo! O conhecimento de si é o começo da sabedoria. “Conhece-te a timesmo!” (γν θι σαυτóν) é o ensinamento de vida atribuído a um dos SeteSábios, talvez até um preceito de origem divina para a auto-realização.Estava inscrito na entrada do templo de Apolo em Delfos, o “umbigo domundo”, o ponto em que duas águias libertadas por Júpiter nasextremidades da terra, e direcionadas para o seu centro, haviam seencontrado. Ao mesmo tempo é a máxima em que se fundamenta a lição de vida quea filosofia desde sempre pretendeu transmitir: “Todos os homens têm apossibilidade de conhecer a si mesmos”, já afirma Heráclito (fr. 116). Mas ésobretudo Sócrates quem faz da arte de conhecer a si mesmo o eixo de todaa sabedoria filosófica, como testemunha Platão no Alcibíades Maior, emque o princípio délfico é retomado e transformado na regra áurea docuidado de si. Não por acaso, na tradição iconográfica a sabedoria serámuitas vezes representada como uma figura feminina que segura na mão oprecioso instrumento em que é possível olhar-se e conhecer-se: o espelho. No entanto, o conhecimento de si é também o erro de Narciso. Ovaidoso dobrar-se sobre si, de quem, apaixonado pela própria beleza, vêunicamente a si mesmo e não consegue entrar em relação com a realidade.Nesse sentido, conhecer apenas a si mesmo significa permanecerprisioneiro da própria imagem. Através dos séculos1, o motivo do conhecimento de si, em seu duplovalor, chega até a era moderna, em que é retomado e desenvolvidoespecialmente pela filosofia moral. Até Goethe2, que se mostra cético sobrea origem divina do lema délfico, por estar convencido de seu caráterenganoso:
Erkenne dich! – Was soll das heißen? Es heißt: sei nur! und sei auch nicht! Es ist eben ein Spruch der lieben Weisen, Der sich in Kürze widerspricht. Erkenne dich! Was hab’ich da für Lohn? Erkenne ich mich, so muß ich gleich davon. Als wenn ich auf den Maskenball käme Und gleich die Larve vom Angesicht nähme.3 2. O manuscrito perdido Schopenhauer extrai o motivo do conhecimento de si mesmo dafilosofia moral e também, naturalmente, de sua invejável familiaridade coma cultura clássica. Mas não se limita a tratá-lo de maneira abstrata: pratica-ocomo sabedoria concreta de vida. Sob o título de Eis heautón, tomado emprestado das memórias deMarco Aurélio, ele reúne no decorrer dos anos meditações “destinadas a simesmo”, as quais darão origem a um “livro secreto”, que se perdeu e queaqui reconstruímos e apresentamos. Iniciado em 1821 e enriquecido nas duas décadas seguintes, consistia demais ou menos trinta páginas, repletas de anotações autobiográficas,recordações, reflexões, ensinamentos de vida, regras de comportamento,máximas, citações e provérbios, que o professor de Dantzig apontara comosendo o mais importante para ele, como uma espécie de resumo da própriasabedoria pessoal de vida: em suma, como preceitos de uma arte deconhecer a si mesmo e orientar-se no mundo. Trata-se de um pequeno livro precioso escrito, não por acaso, numperíodo de grandes adversidades, que haviam colocado a dura prova atêmpera de seu autor. De um lado, após a publicação do Mundo (1819),Schopenhauer amadurecera a plena consciência da sua vocação filosófica,não se considerando inferior a ninguém nesse campo e sentindo-se atémesmo investido de uma missão diante da humanidade. Por outro lado, essasua consciência não merecera nenhum reconhecimento por parte dacorporação dos filósofos. Ao contrário, sua obra foi ignorada e sua carreirainterrompida desde o início de seu duro embate com Hegel, o astrodominante no firmamento filosófico da época. A isso acrescentaram-seobstáculos de todos os tipos: o rompimento com a mãe, problemas
financeiros ligados à herança paterna, dificuldades insuperáveis nasrelações com os outros, uma inflexível desconfiança para com o outro sexo,e vários outros “alimenta misantropiae” que justificam a sua visãopessimista da vida. Esta, porém, não é o fruto amargo da fraqueza, e sim oresultado coerente da lucidez, do desencanto e do sentido trágico daexistência. Coerentemente, Schopenhauer não se comporta nem como estóicofatalista nem como erudito perdido em seus pensamentos, mas comocorajoso homem do mundo que reage aos desafios existenciais lançandomão de todas as técnicas e estratégias que sua inteligência e sua capacidadede navegar no mundo lhe põem à disposição. Daí se origina a convicção schopenhaueriana de que a filosofia não éapenas conhecimento teórico do ser, mas também sabedoria prática de vida.E ele lhe dá expressão em uma série de pequenos tratados, redigidos parauso pessoal, mas dos quais agora não se pode prescindir e que obrigam arever a tradicional imagem monolítica do seu pensamento baseadaunicamente na obra publicada em vida. Textos como a Eudemonologia, oTratado sobre a honra e a Dialética erística4, compostos nos anos cruciaisde Berlim, inserem-se nessa perspectiva. O Eis heautón pertence ao mesmocontexto e, em certo sentido, expressa a quintessência de tal maneira deentender o saber filosófico. 3. Pesquisas e suspeitas Schopenhauer não escondera de amigos e seguidores a existência dessemanual pessoal, zelosamente guardado. No entanto, confiara às pessoasmais íntimas que poderia ser publicado, quando muito, só depois de suamorte. É o que conta Ernst Otto Lindner, o primeiro que deu notícia de suaexistência, lamentando o desaparecimento do manuscrito, e outrosconfirmam a mesma versão5. No entanto, as tentativas de encontrá-lo feitas logo após a morte deSchopenhauer (21 de setembro de 1860), e repetidas depois de eliminadosos impedimentos da herança (6 de abril de 1861), foram inúteis. Emparticular, Adam von Doss voltou a insistir inúmeras vezes com o executortestamentário, Wilhelm Gwinner. O mesmo fez Julius Frauenstädt, gestordesignado das cartas filosóficas, que encontrara nestas últimas váriasreferências ao misterioso caderno.
Gwinner informou: “O Eis heautón não era um manuscrito científico,mas referia-se apenas a coisas pessoais, a suas relações particulares comalgumas pessoas, misturadas com algumas regras de prudência e citaçõespreferidas que costumava anotar em todos os seus cadernos e que, para oque lhe parecera oportuno, já havia utilizado nos Parerga. Era um cadernode mais ou menos trinta folhas soltas, do qual às vezes me ditara algumacoisa, e que depois de sua morte, por vontade dele, foi destruído.”6 Frauenstädt, que tivera a esperança de poder ter acesso ao documentoinédito para a nova edição dos Parerga und paralipomena que estavapreparando, ficou bem insatisfeito com a resposta. Especialmente porque,pouco depois, Gwinner publicou uma biografia do filósofo – ArthurSchopenhauer aus persönlichem Umgange dargestellt [ArthurSchopenhauer apresentado a partir do trato pessoal] (1862) – em que erapossível reconhecer alguns trechos muito bem escritos e próximos demaisdo estilo de Schopenhauer para serem de Gwinner. Em suma, surgiu asuspeita de que este último, antes de recorrer ao fogo, tivesse exploradoamplamente as cartas inéditas que tinha em mãos para enriquecer a própriabiografia do filósofo. Os discípulos mais fiéis do mestre consideraram o comportamento deGwinner ainda mais indigno por ele se gabar de não ser schopenhauerianoe, até, aderindo a uma Weltanschauung cristã inspirada em Jacob Böhme eFranz von Baader, ter se afastado da metafísica do pessimismo. Justamenteno ano do desaparecimento de Schopenhauer, Gwinner publicara, com opseudônimo de Natalis Victor, um romance, Diana und Endymion, em quepodem ser encontradas boas amostras disso. 4. Gwinner em apuros O que fez Frauenstädt então? Procurou obter o consentimento dosadeptos de Schopenhauer para atacar Gwinner e obrigá-lo a confessar ou arestituir o caderno desaparecido. Em resposta à biografia de Gwinner,publicou, juntamente com o já mencionado Ernst Otto Lindner, um amplovolume de memórias e inéditos: Arthur Schopenhauer. Von ihm. Über ihn.Ein Wort der Vertheidigung von Ernst Otto Lindner und Memorabilien.Briefe und Nachlaßstücke von Julius Frauenstädt [Arthur Schopenhauer.Dele. Sobre ele. Uma palavra de defesa expressa por Ernst Otto Lindner eMemórias. Cartas e peças do espólio de Julius Frauenstädt] (1863).
O testemunho pessoal de Lindner foi precioso. Lembrando queSchopenhauer lhe confiara diversas informações sobre o Eis heautón, aúltima vez em 1858, ele rejeitava expressis verbis a versão de Gwinner:“Continuo achando muito estranho”, contestava, “que o próprioSchopenhauer tenha ordenado a destruição do escrito. Isso não condiz emnada com as declarações que ele me fez. Por outro lado, essa disposição édifícil de conciliar com a sua natureza tão prudente, e por isso é difícilacreditar que tenha confiado a destruição de um escrito tão importante paraele […] à boa vontade de um executor testamentário.”7 Além disso, Lindnerreafirmava a acusação de plágio: as evidentes discrepâncias de estilo que senotavam no texto de Gwinner só podiam ser explicadas supondo que naprópria exposição biográfica este último se limitara a retomar literalmentetrechos do manuscrito secreto. Gwinner defendeu-se com o libelo Schopenhauer und seine Freunde.Zur Beleuchtung der Frauenstädt-Lindnerschen Vertheidigung sowie zurErgänzung der Schrift “Arthur Schopenhauer aus persönlichem Umgangedargestellt” [Schopenhauer e seus amigos. Sobre a elucidação da defesa deFrauenstädt e Lindner, assim como sobre a complementação do texto“Arthur Schopenhauer apresentado a partir do trato pessoal”] (1863). Mas,ao rejeitar com desdém a acusação de plágio, fazia uma confissãoinvoluntária: reconhecia que Schopenhauer lhe havia “transmitido” e “lido”algumas partes do controvertido caderno, que ele depois transcrevera eincluíra na sua biografia. 5. Estranho comportamento Na verdade, teria sido simples para Gwinner dissipar dúvidas ehesitações. Bastaria que publicasse suas próprias anotações e qualquer umpoderia verificar os fatos, ou seja, separar claramente aquilo que brotara desua pena daquilo que, ao contrário, remontava a formulações mais oumenos diretas do mestre. Há alguns indícios que permitem afirmar, aliás, que na realidade ele nãodestruíra aquelas cartas, mas, ao contrário, as conservava com todo o sigilo.Por exemplo, nas outras edições da sua biografia (segunda edição com otítulo Schopenhauers Leben [Vida de Schopenhauer], 1878; terceira edição,1910), acrescentou novas afirmações de Schopenhauer, citando-asliteralmente, entre aspas: evidentemente podia copiá-las das cartas inéditas
em seu poder. Ou então: na troca de cartas com vários correspondentesfornece-lhes esclarecimentos e detalhes. E qual era a sua fonte?Obviamente, aquelas mesmas cartas. O fato é, porém, que Gwinner não tornou público nada do material quepossuía, deixando aos que vieram depois a tarefa de imaginar os motivosque o levaram a não desejar revelar o próprio segredo. Entre os pósterosque imaginaram tais motivos encontrava-se até Nietzsche que, em ZurGenealogie der Moral [Genealogia da moral: uma polêmica] (III, 19),observava a esse respeito: “O mesmo [ou seja, queimar os papéis do própriomestre] parece ter feito o Dr. Gwinner, executor testamentário deSchopenhauer: pois também Schopenhauer escrevera algo sobre si mesmo etalvez até contra si (Eis heautón)”. 6. De pai para filho Com a morte de Gwinner (27 de janeiro de 1917), as misteriosas cartaspassaram às mãos do filho Arthur, cônsul na Espanha e depois altofuncionário do Deutsche Bank. A certa altura, ele pensou em divulgá-las,como revela uma notícia da imprensa de Frankfurt de 4 de junho de 1918:“Schopenhaueriana. Recebemos e publicamos o seguinte anúncio: o diretorArthur von Gwinner, frankfurtiano de nascimento, presenteou aStadtbibliothek de Frankfurt com os preciosos apontamentos de seu paisobre o filósofo Schopenhauer. Eles só poderão ser abertos dez anos depoisda morte de seu autor, que foi amigo do filósofo.”8 Sem contar a inédita proibição decenal, aquelas cartas na verdade nuncachegaram à Stadtbibliothek. Nem a viúva, nem mais tarde a neta, Charlottevon Gwinner, conseguiram encontrá-las. 7. Mais acusações: Grisebach A polêmica reacendeu-se quando Eduard Grisebah, editor das obras deSchopenhauer, voltou a se debruçar sobre o problema e novamente notou adependência de algumas partes da biografia de Gwinner de frases queprovavelmente estavam no manuscrito desaparecido.Com uma série deargumentos – baseando-se particularmente em uma afirmação do próprioGwinner de 22 de abril de 1870, segundo a qual “para o seu livro eleretirara passagens isoladas do Eis heautón, e possivelmente algumas delas
tivessem até sido extraídas ao pé da letra”9 –, Grisebach afirma comfirmeza a acusação de plágio e até de falsa declaração, visto queconsiderava que Schopenhauer jamais transmitira a disposição de destruir oEis heautón. Entre outras coisas, ele considerava que o manuscrito originalnão tinha trinta páginas, como afirmava Gwinner, mas pelo menos oitenta. 8. As reconstruções do texto e a presente edição Grisebach aprofundou, portanto, o estudo do problema e fez a primeiratentativa de reconstrução conjectural do caderno perdido: depois deidentificar as passagens da biografia de Gwinner que com toda aprobabilidade pertenciam ao manuscrito de Schopenhauer, ele as reuniu, asorganizou, combinando vários critérios, cronológico e temático, e,passando-as para a primeira pessoa, a partir da terceira em que seencontravam em Gwinner, publicou-as no volume organizado por ele:Schopenhauer’s Gespräche und Selbstgespräche [Schopenhauer: conversascom os outros e consigo mesmo] (Berlim, Ernst Hofmann & Co., 1898, pp.95-123, comentários pp. 125-39; segunda edição ampliada, 1902, pp. 120-30, comentários pp. 151-69). Mais tarde, em sua edição dos escritospóstumos, naqueles que chamou Neue Paralipomena, inseriu um capítulointeiro, o XXII, com o título Eis heautón: über sich selbst, constituído poroutro material autobiográfico10. Com base no trabalho realizado por Grisebach, mas efetuando umreexame do manuscrito legado e procedendo a uma datação dos trechos,Arthur Hübscher propôs uma nova reconstrução do texto. Uma primeira vezno âmbito da edição dos Sämtliche Werke dirigida por Paul Deussen (vol.XVI, 1942, pp. 61-91, comentário e notas pp. 559-77). Uma segunda, maisaprimorada, no último volume da sua edição das cartas póstumas (Derhandschriftliche Nachlaß, vol. IV, tomo II, pp. 102-29, comentário e notaspp. 228-306). A presente edição leva em conta ambas as reconstruções, Grisebach eHübscher, preferindo geralmente a segunda, cuja cronologia utiliza, mas emalguns pontos segue um caminho próprio. De fato, tendo em vista o caráterconjectural e incompleto da cronologia, sobretudo na introdução e na parteinicial do texto, decidiu-se organizar os fragmentos de acordo com umcritério temático.
O resultado permite ter uma idéia bastante clara do pequeno manual defilosofia prática que Schopenhauer prepara no decorrer daqueles anos. Épossível identificar as regras fundamentais da sabedoria de vida seguida porele: autarquia, auto-estima, amor-próprio, vida solitária, aristocracia dainteligência, saudável misantropia, prudência nas relações com o outrosexo, e assim por diante. No fundo de tudo isso, a inabalável convicção deque, nas dúvidas e nas incertezas de que a vida está repleta, é sempremelhor raciocinar ex summo malo, ou seja, pensar sempre no pior, em vezde se deixar enganar pela miragem do bem ou pelo improvável evento dabondade dos outros. Mesmo na inevitável fragmentariedade da reconstrução, este “livrosecreto” abre, portanto, um acesso direto e privilegiado aos pensamentosíntimos do mestre do pessimismo. Para quem – é verdade – a vida não ébela, mas mesmo assim a filosofia pode fazer muito para tornar maissuportável sua insustentável e fatal leveza.................... 1. Cf. Pierre Courcelle, Connais-toi toi-même. De Socrate à Saint Bernard, 3 vols., Paris,Études augustiniennes, 1974-1975. 2. Johann Wolfgang Goethe, Sprüche, in: Goethes Werke, Hamburger Ausgabe, org. por ErichTrunz, tomo 1.1: Gedichte und Epen, 16.a ed., Munique, 1996, p. 308. 3. “Conhece a ti mesmo! – Que significa? / Significa: seja! / e ao mesmo tempo não seja! / É umlema dos sábios antigos / que na sua brevidade se contradiz. / Conhece a ti mesmo! E o que ganhocom isso? / Se me conheço, devo desaparecer logo. / É como se viesse a um baile mascarado / paratirar-me logo a máscara do rosto.” 4. Publicados no Brasil, pela Martins Fontes, respectivamente com os títulos: A arte de ser feliz(2001), A arte de se fazer respeitar, ou tratado sobre a honra (2003), A arte de ter razão (2001). 5. Cf. Lindner-Frauenstädt, Arthur Schopenhauer. Von ihm. Über ihn, pp. 5-6. Vejam-se tambémos testemunhos em Schopenhauer, Gespräche, ns. 118 e 119 (Johann August Becker), 275-276(Adam Ludwig von Doss), 306 (Ernst Otto Lindner), 351 (Robert von Hornstein). Para as indicaçõesbibliográficas dos textos de Schopenhauer citados, ver a relação das obras utilizadas (p. XXI). 6. Lindner-Frauenstädt, Arthur Schopenhauer. Von ihm. Über ihn, p. 6. 7. Loc. cit. 8. Em Schopenhauer, Der handschriftliche Nachlaß, vol. IV, tomo II, p. 292. 9. Edita und Inedita Schopenhaueriana, org. por E. Grisebach, p. 36. 10. Arthur Schopenhauers handschriftlicher Nachlaß, org. por E. Grisebach, vol. IV, pp. 338-64.
Edições das obras de Schopenhauer utilizadasEdita und Inedita Schopenhaueriana, org. por Eduard Grisebach, Leipzig, Brockhaus, 1888.Schopenhauer’s Gespräche und Selbstgespräche, org. por Eduard Grisebach, Berlim, Ernst Hofmann & Co., 1898 (2.a ed. ampliada, 1902).Arthur Schopenhauers handschriftlicher Nachlaß, org. por Eduard Grisebach, 4 vols., Leipzig, Reclam, 1891-1893 (2.a ed., 1895-1901; 3.a ed., 1926-1931).Sämtliche Werke, org. por Paul Deussen, 13 vols., Munique, Piper, 1911- 1942.Sämtliche Werke, org. por Arthur Hübscher, 7 vols., 3.a ed., Wiesbaden, Brockhaus, 1972 (4.a ed. revista por Angelika Hübscher, Mannheim, Brockhaus, 1988). As citações das obras publicadas em vida são extraídas desta edição, em especial dos vols. II-III (Die Welt als Wille und Vorstellung) e dos vols. V-VI (Parerga und Paralipomena).Der handschriftlicher Nachlaß, org. por Arthur Hübscher, 5 vols. em 6 tomos, Frankfurt a.M., Kramer, 1966-1975 (reimpressão anastática, Munique, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1985); ed. it., Scritti postumi, org. por Franco Volpi, Milão, Adelphi, 1996-.Gespräche, org. por Arthur Hübscher, Stuttgart-Bad-Cannstatt, Holzboog, 1971.Gesammelte Briefe, org. por Arthur Hübscher, Bonn, Bouvier, 1978.Werke in fünf Bänden, org. por Ludger Lütkehaus, Zurique, Haffmans, 1988.Die Schopenhauers. Der Familien-Briefewechsel von Adele, Arthur, Heinrich Floris und Johanna Schopenhauer, org. por Ludger Lütkehaus, Zurique, Haffmans, 1991.
Wilhelm Gwinner, Arthur Schopenhauer aus persönlichem Umgange dargestellt, Leipzig, Brockhaus, 1862 (nova edição org. por Charlotte von Gwinner, 1922; edição reduzida org. por C. von Gwinner, Frankfurt a.M., Kramer, 1963).Arthur Schopenhauer. Von ihm. Über ihn. Ein Wort der Vertheidigung von Ernst Otto Lindner und Memorabilien. Brief und Nachlaßstücke von Julius Frauenstädt, Berlim, Hayn, 1863.Wilhelm Gwinner, Schopenhauer und seine Freunde. Zur Beleuchtung der Frauenstädt-Lidnerschen Vertheidigung sowie zur Ergänzung der Schrift “Arthur Schopenhauer aus persönlichem Umgange dargestellt”, Leipzig, Brockhaus, 1863.
Cronologia1788. Nasce Arthur Schopenhauer em Dantzig (Gdansk). Kant: Kritik der praktischen Vernunft [Crítica da razão prática].1790. Kant: Kritik der Urteilskraft [Crítica da faculdade do juízo].1794. Fichte: Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre [Fundamentos da doutrina da ciência em seu conjunto].1800. Schelling: System des transcendentalen Idealismus [Sistema do idealismo transcendental].1800-5. Destinado por seu pai ao comércio, Schopenhauer realiza uma série de viagens pela Europa ocidental: Áustria, Suíça, França, Países Baixos, Inglaterra. Isso lhe rende um diário de viagem e um excelente conhecimento do francês e do inglês.1805. Morre seu pai. Schopenhauer renuncia à carreira comercial para dedicar-se aos estudos nos liceus de Gotha e de Weimar.1807. Hegel: Die Phänomenologie des Geistes [A fenomenologia do espírito].1808. Fichte: Reden an die deutsche Nation [Discurso à nação alemã]. Goethe: Die Wahlverwandtschaften [As afinidades eletivas] e Faust [Fausto] (primeira parte).1809-13. Schopenhauer prossegue seus estudos nas universidades de Göttingen e de Berlim.1813. Schopenhauer: Ueber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde [Da quádrupla raiz do princípio de razão suficiente] (tese de doutorado).1814. Morre Fichte.1815. Derrota de Napoleão em Waterloo. O Congresso de Viena reorganiza a Europa sob o signo da Santa Aliança.1816. Schopenhauer: Ueber das Sehen und die Farben [Sobre a visão e das cores].1818. Hegel entra na Universidade de Berlim, onde lecionará até sua morte.1819. Schopenhauer: Die Welt als Wille und Vorstellung [O mundo como vontade e representação].1820. Schopenhauer começa a lecionar em Berlim com o título de privat-dozent. Fracassa.
1825. Nova tentativa na universidade de Berlim. Novo fracasso. Schopen docência e passa a viver daí em diante com a herançapaterna.1830. Hegel: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften inGrundiss [Enciclopédia das ciências filosóficas] (edição definitiva).1831. Morre Hegel.1832. Morre Goethe.1833. Schopenhauer estabelece-se em Frankfurt, onde residirá até suamorte.1836. Schopenhauer: Ueber den Willen in der Natur [Da vontade nanatureza].1839. Schopenhauer recebe um prêmio da Sociedade Norueguesa deCiências de Drontheim por uma dissertação sobre “A liberdade davontade”.1840. A dissertação “Sobre o fundamento da moral” não recebe oprêmio da Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague.1841. Schopenhauer publica suas duas dissertações de concurso sob otítulo de Die beiden Grundprobleme der Ethik [Os dois problemasfundamentais da ética]. Feuerbach: Das Wesen des Christentums [Aessência do cristianismo].1843. Kierkegaard: Frygt og Boeven [Temor e tremor].1844. Schopenhauer: O mundo como vontade e representação, segundaedição acompanhada de Suplementos. Stirner: Der Einzige und seinEigentum [O único e sua propriedade]. Marx e Engels: Die heiligeFamilie oder Kritik der kritischen Kritik gegen Bruno Bauer undKonsorten [A sagrada família ou Crítica da crítica crítica contra BrunoBauer e sócios].1846. Comte: Discours sur l’esprit positif [Discurso sobre o espíritopositivo].1848. Marx e Engels: Manifest der Kommunistischen Partei [Manifestodo Partido Comunista]. Revolução na França e na Alemanha. Suacorrespondência confirma que Schopenhauer desejou e apoiou arepressão em Frankfurt.1851. Schopenhauer: Parerga und Paralipomena [Parerga eParalipomena]. Êxito e primeiros discípulos, Frauenstädt, Gwinner etc.1856. Nasce Freud.1859. Darwin: On the Origin of Species [A origem das espécies].1860. Morre Schopenhauer.
A ARTE DE CONHECER A SI MESMO
1 Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima queconduziu minha trajetória de vida. Pois a vontade é o que há de maiscomum e de pior em nós. Devemos ocultá-la como se faz com a genitália,embora ambos sejam a raiz de nosso ser1. Minha vida é heróica e não podeser avaliada pelo metro do filisteu, ou com o cúbito do merceeiro, muitomenos pela medida do homem comum, que não possui outra existênciasenão a do indivíduo limitada a um curto espaço de tempo. Portanto, nãoposso me afligir ao pensar que me faltam coisas que fazem parte datrajetória normal de um indivíduo: emprego, casa, jardim, esposa e filho. Aexistência desses indivíduos transcorre de maneira sempre igual. Já a minhavida, ao contrário, é intelectual, e seu desenvolvimento regular e atividadeconstante têm de produzir frutos nos poucos anos de pleno poder espirituale de sua livre utilização, e, assim, por séculos enriquecer a humanidade.Minha vida pessoal é tão-somente a base para a intelectual, a conditio sinequa non, ou seja, algo totalmente secundário. Quanto mais estreita for estabase, tanto mais segura; e se realizar o que deve com relação à minha vidaintelectual, terá atingido o seu fim. O instinto, que é próprio a todos aquelesque têm objetivos intelectuais, também se tornou um guia seguro para mim,de forma que deixei de lado os interesses pessoais e tudo concentrei emminha existência espiritual. Por isso também o fato de a trajetória de minhavida parecer desconexa e destituída de plano não pode me surpreender: elase assemelha ao acompanhamento na harmonia, que igualmente não podeconter em si nexo algum, visto que serve apenas de fundo para a vozprincipal, na qual se encontra o nexo. As coisas de que necessariamente souprivado em minha vida pessoal me são compensadas de outra maneira, aolongo da vida, pelo pleno gozo do meu espírito e empenho em favor de suaorientação inata; de fato, se as possuísse, não as fruiria, e ser-me-iam atémesmo impeditivas. Para um espírito que doa e realiza por si mesmo aquiloque nenhum outro pode da mesma forma doar e realizar, e que justamentepor isso subsiste e perdurará – seria ao mesmo tempo cruel e insano querer
forçá-lo a fazer outras coisas, ou mesmo atribuir-lhe tarefas obrigatórias,afastando-o do seu dom natural.................... 1. Cf. Parerga und paralipomena, vol. II, p. 635.
2 Já nos primeiros anos de minha juventude, notei que enquanto todas asoutras pessoas aspiravam a bens exteriores, eu não me dirigi para tais bens,pois trago em mim um tesouro infinitamente mais valioso do que quaisquerbens exteriores; trata-se apenas de desenterrá-lo, para o que as primeirascondições são formação espiritual e ócio total, portanto, independência. Aconsciência disso, no princípio obscura e vaga, tornou-se, ano após ano,cada vez mais clara e foi suficiente para sempre fazer de mim uma pessoaprudente e parcimoniosa, isto é, para dirigir o meu cuidado para amanutenção de mim mesmo e de minha liberdade e não para algum bemexterior. Indo de encontro à natureza e ao direito humano, tive de abstermede usar minhas forças em favor de minha pessoa e do fomento de meu bem-estar, para assim empregá-las em prol da humanidade. Meu intelecto nãopertenceu a mim, mas ao mundo. A percepção deste estado de exceção e dadifícil tarefa dele procedente – viver sem empregar minhas forças para mimmesmo – exerceu contínua pressão sobre o meu ser e o tornou ainda maispreocupado e cuidadoso do que já era por natureza. No entanto, levei tudo abom termo, realizei a tarefa, cumpri minha missão. Por conta disso tambémgozei do direito de zelar para que o sustento proveniente de minha herançapaterna – que por tanto tempo me manteve e sem o qual o mundo jamaisteria tido algo de mim – durasse até minha idade avançada. Ofício algum nomundo, nenhum cargo de ministro ou de governador me indenizariam pelaperda de meu ócio livre, privilégio que me veio de família.
3 Comparada à importância do indivíduo, a importância do homemintelectualmente imortal tornou-se em mim algo tão infinitamente grande,que eu, embora me sobrecarregasse com tantas preocupações pessoais, logoas deixava passar e desaparecer, assim que um pensamento filosófico seanunciava. Pois tal pensamento sempre foi para mim a coisa mais séria, oresto, ao contrário, mero passatempo. Esse é o título de nobreza e a carta dealforria da natureza. A felicidade do homem ordinário reside na alternânciaentre trabalho e prazer: para mim, ao contrário, ambos são uma coisa só. Eispor que a vida de homens de minha espécie é necessariamente ummonodrama. Missionários da verdade a ser transmitida ao gênero humano,como eu, após terem se reconhecido como tais, pouco terão em comum comas pessoas, exceto por sua própria missão, assim como os missionários naChina que não se confraternizam com os chineses. Em todas as situações davida em sociedade, um homem como eu, sobretudo na juventude, sente-secontinuamente como alguém que usa roupas que não lhe servem.
4 A parte de mim que fica mais próxima das coisas exteriores, como umacamisa fica do corpo, é minha independência, que não admite que eu sejaobrigado a esquecer quem sou e, assim, a desempenhar o papel de umoutro: por exemplo, o de um escritor cuja produção é seu ganha-pão; ou ode um professor para quem seu saber e pensamento são como asmercadorias que um merceeiro coloca em exposição; ou o de umconselheiro expondo suas idéias; ou, ainda, o de um preceptor.
5 Como para mim as pessoas com quem vivo nada podem ser, meu maiorprazer na vida são os pensamentos monumentais deixados por seressemelhantes a mim, que, como eu, uma vez vaguearam por entre a gente domundo. Sua letra mais morta afeta-me de maneira mais familiar do que aexistência viva dos bípedes. De fato, a um imigrante, a carta recebida dopaís natal faz muito mais sentido do que a conversa com os estrangeiros queo cercam! E, decerto, para o andarilho na ilha deserta, os vestígios dehumanos que por ali passaram são muito mais familiares do que todos osmacacos ou cacatuas nas árvores2!................... 2. Retomado em Pandectae (1834), p. 160, in: Der handschriftliche Nachlaß, vol. IV/1, p. 179.
6 Clima e modo de vida em Berlim não me agradam. Vive-se lá comonum navio: tudo é escasso, caro, difícil de ter, os alimentos são ressecados eduros. As malandragens e trapaças de todo tipo são, todavia, piores do queno país onde florescem os limoeiros3. Isto não apenas nos põe no maisfastidioso estado de precaução, mas amiúde faz com que aqueles que nãonos conhecem levantem suspeitas contra nós, que nem sonhávamos, e,propriamente falando, nos tratem como filous, gatunos, até que a explosãofatal aconteça.................... 3. Ou seja, a Itália, conforme o verso inicial do poema de Goethe em Wilhelm MeistersLehrjahre [Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister]: “Kennst Du das Land? Wo die Citronenblühen…” [Conheces a terra? Onde os limões florescem…], in: Werke. Hamburger Ausgabe em 14volumes, Munique, Beck, 1981, vol. VII, p. 145.
7 Visto que o tempo propriamente dito da concepção genial já passou paramim e de agora em diante minha vida encontra-se no momento maisfavorável para a atividade de ensino, tem ela de abrir-se aos olhos de todos,e adquirir um lugar na sociedade, o qual não posso conquistar na minhacondição de celibatário4.................... 4. Provavelmente Schopenhauer alude aqui ao intentado matrimônio com Caroline RichterMedon, corista do teatro nacional de Berlim, que ele conheceu em 1821 e com a qual teve uma longarelação amorosa.
8 Nos súbitos ataques de insatisfação sempre reflito sobre qual osignificado de um homem como eu viver toda a sua vida dedicando-se aodesenvolvimento de suas aptidões e vocação inata, e como milhares secolocaram contra um, dizendo que isso não levaria a nada, e que eu seriamuito infeliz. Mas, se de tempos em tempos me senti infeliz, isto ocorreumais devido a uma méprise, a um equívoco em relação à minha pessoa,visto que me tomei por um outro e não por mim mesmo, e, assim, lastimei otormento: por exemplo, ao tomar-me por um professor adjunto que não setorna professor titular e que não tem aluno algum5; ou por uma pessoa dequem este filisteu fala mal e aquela fuxiqueira faz fofoca; ou pelo acusadonum processo de injúria6; ou pelo apaixonado que galanteia uma moça quenão lhe dá ouvidos; ou pelo paciente que trata a própria doença em casa; oupor outras pessoas assim que sofrem semelhantes misérias. Não fui nadadisso. Tudo me era tecido estranho, do qual no máximo era feito um casacoque eu usava por um tempo e depois trocava por outro. Quem sou eu então?Aquele que escreveu O mundo como vontade e representação e deu umasolução para o grande problema da existência, que talvez torne obsoletas assoluções anteriores, e que de alguma forma ocupará os pensadores dospróximos séculos. Esse sou eu. Que coisa poderia me atingir nos anos emque ainda hei de viver?................... 5. Como se sabe, a carreira universitária de Schopenhauer naufragou de um lado pela resistênciaaos professores de filosofia, de outro por sua oposição intransigente e pertinaz ao idealismo entãovigente. Em especial a discussão com Hegel foi desastrosa. A primeira controvérsia acalorada entreambos se deu na defesa de sua dissertação, ao fim do exame de admissão para docente naUniversidade de Berlim, em 23 de março de 1820, diante do corpo acadêmico da universidade.Depois, o jovem professor adjunto marcou suas preleções para o mesmo horário que as de Hegel –como resultado, a sala de aula do primeiro ficou praticamente vazia, e as aulas logo precisaram sersuspensas. Terminou assim o plano de uma carreira universitária. Seu ácido ajuste de contasintitulado “Über die Universitäts philosophie” [Sobre a filosofia universitária] foi publicado nosParerga und paralipomena (1851).
6. Referência ao processo movido por sua vizinha, uma certa Caroline Marquet. Ao fim de umadiscussão na porta de entrada do prédio onde moravam, em que essa senhora conversava alto comoutras senhoras e atrapalhava o filósofo em seus pensamentos – ou em um de seus discretosencontros com Caroline Medon, como biógrafos maldosos afirmam –, deu-se um confronto corporalentre os dois, no qual Schopenhauer a feriu. Após um longo processo, que durou bons cinco anos,Schopenhauer foi sentenciado por injúria real e sentenciado a pagar à senhora uma pensão vitalícia.Quando ela morreu, anotou com um jogo de palavras: Obit anus, abit onus: foi-se a velha, foi-se oônus.
9 Quando eu tinha 29 anos de idade um senhor que nunca vi aproximou-se de mim para dizer que eu seria algo de grande. Um italiano totalmentedesconhecido dirigiuse a mim com as seguintes palavras: “Signore, lei deveavere fatto qualche grande opera: non so cosa sia, ma lo vedo al suo viso”[Meu senhor, o senhor deve ter realizado alguma grande obra: não sei o quê,mas a vejo em seu rosto]7. Um inglês, que acabara de me ver, declarou queeu devia possuir um espírito extraordinário. Um francês confessousubitamente: “Je voudrais savoir ce qu’il pense de nous autres; nousdevons paraître bien petits à ses yeux. C’est qu’il est un être supérieur”[Gostaria de saber o que ele pensa de nós; devemos lhe parecer bemdiminutos, pois ele é um ser superior]. O filho de uma família inglesa, queestava de viagem e hospedava-se num quarto próximo ao meu, gritouexaltado: “No, I’ll sit here, I like to see his intellectual face!” [Não, vouficar sentado aqui, gosto de ver seu rosto intelectual!].................... 7. A anedota também é relatada pelos “apóstolos” Julius Frauenstädt e Robert von Hornstein(Schopenhauer, Gespräche, pp. 96, 216).
10 Assim que passei a puberdade, reconheci com toda clareza a posiçãoque tinha de ocupar neste mundo, a ponto de empregar para a condução deminha vida as seguintes palavras de Chamfort: Il y a une prudence supérieure à celle qu’on qualifie ordinairement de ce nom, elle consiste à suivre hardiment son caractère, en acceptant avec courage les désavantages et les inconvénients qu’il peut produire. [Há uma prudência superior àquela ordinariamente denominada com esse nome, e que consiste em seguir audaciosamente o próprio caráter, aceitando com coragem as desvantagens e os inconvenientes que daí possam surgir.8] Não temo pela dignidade moral de minhas ações. Penso antes comoPolonius: This above all, – to thine own self be true; And it must follow, as the night the day, Thou canst not then be false to any man. Shakespeare, Hamlet, I, 3, v. 78-80 [Acima de tudo sê fiel a ti mesmo; Disso se segue, como a noite ao dia, Que não podes ser falso com ninguém.]................... 8. Cf. Chamfort, Produits de la civilisation perfectionnée. Maximes et pensées, caractères etanecdotes, org. por Jean Dagen, Paris, Garnier-Flammarion, 1968, cap. I, n. 38.
11 Em relação às minhas aspirações, elas só seriam aceitas por aqueles queestão em condição de sentir em que elas se fundam, porque elas não afetamseus interesses, e esse sentimento, bem como essa aceitação, lhes rendehonra moral e intelectual. O caso, contudo, daqueles que só as admitiriamsob a condição de que eu tomasse tal aceitação como um presente,assemelha-se a passar um recibo com os dizeres “recebemos eagradecemos”, embora se trate aí de uma maldita obrigação; ou algoparecido ao suplicante plaudite [pedido de aplauso]9 que se encontra no fimdas peças de Plauto. Nunca poderei, portanto, ter mais pretensões do quequalquer outro: as pessoas baseiam-se no fato de que nenhuma coerçãoexterna as obriga em relação a mim, e me mostrarão isso, tão logo eu lhesmostre que o sei. A vergonha do desprezo (despectio) lhes é natural, e todosficam atentos para que ninguém os considere inferior àquilo que elesmesmos acham de si. Eles se fixam no seguinte: Par sum unicuique et moriatur qui me contemnit! [Sou igual a qualquer um, e morra quem me desprezar!10] Estou livre dessa preocupação e sou de tal forma talhado pela natureza,que todos os que não podem ser incluídos entre os melhores têmnecessariamente de me observar com suspeita (suspectio). Eu me fixo noseguinte: Contemnite me, si potestis, vestro periculo, non meo! [Desprezai-me, se podeis, mas o risco é vosso, não meu!11]...................
9. Era a palavra de encerramento dos atores nas antigas comédias. Cf. Cícero, De senectute, 19;Horácio, Ars poetica, 135. Suetônio, Augustus, 99, I, coloca a expressão na boca de Augustomoribundo. 10. Sentença que possivelmente o próprio Schopenhauer formulou em latim. 11. Cf. Marco Aurélio, Tà eis heautón, XI, 13.
12 Sim, quando a juventude de minha fantasia ainda povoava o mundocom seres iguais a mim, e eu tinha uma certa propensão à sociabilidade, equando, após a ausência de vários anos, retornei a Dresden e Berlim, depoisde minha segunda viagem à Itália, todo mundo me achou maravilhosamentemudado, tão grande tinha sido antes a minha melancolia, quando ainda oimpulso natural à sociabilidade, a vontade de me comunicar e a necessidadede adquirir experiência equilibravam-se com a aversão ao ser humano. Achegada da idade adulta, entretanto, acentuou a força repulsiva eenfraqueceu a outra. A partir daí adquiri gradualmente um “olhar solitário”,tornei-me sistematicamente insocial e decidi dedicar o resto da minha vidaefêmera totalmente a mim mesmo e, assim, perder o menor tempo possívelcom aquelas criaturas, a quem o fato de andarem sobre duas pernas conferiuo direito de nos tomarem por seus iguais, ou também, caso notem que não osomos, como ocorre com a maioria, ignorarem astutamente isso e nostratarem como pessoas iguais a elas, ao passo que nós, já aflitos por não osermos, ainda temos de sentir a dor da injúria.
13 Rejeito a afirmação de Bacon de que toda suspeita baseia-se emignorância, e penso como Chamfort: o começo da sabedoria é o temor aoshomens12. Demóstenes tem razão ao dizer: muralhas e muros são bonsmeios de defesa, mas o melhor é a ἀπιστία [desconfiança]. Penso e procedosegundo o mote de Bias: οἱ πλ ιστοι ἂνθρωποι κακοί [a maioria doshomens é ruim]13, e segundo as máximas de Leopardi: L’impostura è animadella vita sociale [a mentira é a alma da vida social]14, e Il mondo è unalega di birbanti contro gli uomini da bene, e di vili contro i generosi [omundo é uma liga de gatunos contra as pessoas de bem, e de vis contra aspessoas generosas]15.................... 12. Cf. Chamfort, Produits de la civilisation perfectionnée, cap. II, n. 116: “L’Écriture a dit quele commencement de la sagesse était la crainte de Dieu; moi, je crois que c’est la crainte deshommes” [A Escritura disse que o começo da sabedoria seria o temor a Deus; mas creio que é otemor aos homens]. Schopenhauer também usa a citação no prefácio da primeira edição de Diebeiden Grundprobleme der Ethik (1841). 13. Mote de Bias, um dos sete sábios (cf. Diógenes Laércio, I, 5, 87; Estobeu, III, 1, 172).Schopenhauer descobriu o mote numa inscrição sob o busto de Bias no Vaticano (cf. Derhandschriftliche Nachlaß, v. III, p. 9), e o cita repetidas vezes em seus textos e cartas (por exemplo, aOsann, em 25 de maio de 1822, e a Frauenstädt, em 22 de junho de 1854). Cf. A. Schopenhauer,Gesammelte Briefe, pp. 86, 87, 346. 14. Giacomo Leopardi, Pensieri, XXIX, na edição usada por Schopenhauer: Opere, org. porAntonio Ranieri, 2 vols., Florença, Le Monnier, 1845, vol. II, p. 128. 15. Op. cit., p. 107.
14 Ao lado do desejo de ter uma mulher que me pertença totalmente, tenhoo plano de me mudar para uma cidade do interior, onde eu não tenha aoportunidade de comprar livros – uma necessidade cuja satisfação, em casode matrimônio, ameaça minhas economias em Berlim. Enquanto isso… ἀλλ’ ἂγε δὴσύ, ϕίλος, μῆτιν ἐμβάλλεο θυμ παντοίην … ϕρονέων πεϕυλαγμένος ε ναι Homero, Ilíada, XXIII, vs. 313, 343 [Pois sim, meu querido, emprega as habilidades que aprendeste… sê cauteloso, prudente e racional!]
15 Um dos pontos em que inexperiência e prudência16 se opõem uma àoutra é que a primeira, em sua consciência, seu agir e discurso, está emgeral relacionada apenas a um tu genérico e indeterminado, portanto, seucomportamento não muda muito conforme a aparência da pessoa com quemela tem relação, mas deposita a sua confiança na mesma medida,independentemente da figura do tu que esteja à sua frente; ademais, tambémaplica na mesma medida a sua cautela para ocultar e encobrir as própriasfraquezas e defeitos, sem ponderar se acaso o tu ao qual se esforçaviolentamente por agradar, forçando a própria natureza, é uma figurafugidia das mais estranhas ou um vigia constante e participativo. Já aprudência, ao contrário, considera sempre a pessoa: uma é para ela digna deconfiança incondicional, outra não merece nenhum crédito; diante de umobservador, ela se coloca em alerta durante anos e refreia a mais tênuemanifestação daquilo que tem de ser encoberto, ao passo que diante deoutro expressa abertamente sua verdadeira natureza, sem em momentoalgum se avergonhar disso… Quanto mais comum esta prudência é nasociedade humana, tanto mais se nota a sua carência. Mas se, na idademadura, aquela inexperiência nos envolver por completo, então podemosconcluir que estamos inclinados a um elevado grau de limitação intelectualou de genialidade.................... 16. Schopenhauer utiliza esse conceito em sua tradução do Oráculo manual y arte de prudencia(1829) [Trad. bras. A arte da prudência, São Paulo, Martins Fontes, 2001], para reproduzir o termoespanhol prudencia.
1617 A cortesia, assim como as moedas feitas de metal, é reconhecidamenteuma moeda falsa. Não se deve economizá-la… Quem, entretanto, pratica acortesia em detrimento de interesses reais assemelha-se àquele quedespende autênticas moedas de ouro em vez de moedas de metal. Assim como a cera, por natureza dura e seca, derretese com um poucode calor, podendo adquirir qualquer forma, até mesmo pessoas duronas ehostis também podem, com um pouco de cortesia e amabilidade, tornar-seflexíveis e solícitas. Nesse sentido, a cortesia é para o ser humano o que ocalor é para a cera.................... 17. Ambos os parágrafos foram usados em Parerga und paralipomena, vol. I, p. 493.
17 “It’s safer trusting fear than faith” [é mais seguro temer os homens doque confiar neles]. Sempre ter em mente que não me encontro em minhapátria, nem entre seres iguais a mim mas, por conta de um destinoespecialmente duro, aliviado apenas pelo conhecimento, tenho de viverentre pessoas que me são mais estranhas do que os chineses são aoseuropeus ou, entre os pássaros, os bípedes, os “hombres que no lo son”[homens que não o são]18. O conhecimento da sentença de Plauto, “homohomini lupus” [o homem é o lobo do homem19], para muitos algo acidental,no meu caso baseia-se num instinto necessário. E assim como há aquelesque temem bestas ferozes, sem as odiar, assim se passa comigo em relaçãoaos seres humanos. Não μισ άνθρωπος [alguém que odeia os homens], masκαταϕρον άνθρωπος [alguém que os despreza] é o que quero ser. Parapoder desprezar, como é justo, todos aqueles que o merecem, ou seja, cincosextos da humanidade, a primeira condição é não odiá-los. Não se devepermitir que o ódio tome conta de nós, pois aquilo que se odeia não sedespreza suficientemente. Em contrapartida, o meio mais seguro contra oódio ao homem é justamente o desprezo ao homem. Mas um desprezodeveras profundo, conseqüência de uma visão clara e nítida da inacreditávelmiséria de sua disposição moral, da enorme limitação de seu entendimento,e do egoísmo sem limites de seu coração, que origina injustiça gritante,inveja e maldade tacanhas, que às vezes chegam às raias da crueldade.................... 18. Expressão de Baltasar Gracián, cf. Parerga und paralipomena, vol. II, p. 86. 19. Cf. Plauto, Asinaria, II, 495: “lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novi”[para o homem, o homem que ele não conhece é um lobo, não um homem]. Cf. também Plínio,Historia naturalis, VII, 1; Sêneca, Epistulae, 103, 1.
18 Num mundo em que pelo menos cinco sextos das pessoas são canalhas,néscias ou imbecis, é preciso que o retraimento seja a base do sistema devida de cada indivíduo do outro sexto restante – e quanto mais ele sedistanciar dos demais tanto melhor. A convicção de que o mundo é umdeserto, em que não se pode contar com companhia, deve se tornar umasensação habitual. Assim como as paredes limitam o olhar, que de novo seamplia tão logo se tenha diante de si campos e descampados, assim tambéma companhia humana limita meu espírito, e a solidão de novo o amplia.Giordano Bruno diz que o homem comum, normal, civil e urbano, queprocura e alcança a verdade, torna-se um homem selvagem, semelhante aum cervo ou eremita; e que todos aqueles que neste mundo quisessem fruiruma vida superior decerto diriam em uníssono: “ecce elongavi fugiens etmansi in solitudine” [vede, fugi para longe e permaneci na solidão],Salmos, 55, 8. Pois a ocupação com coisas divinas os torna mortos para amultidão20. De maneira semelhante expressou-se Kleist, com louvor deSchiller: Ein wahrer Mensch muß fern von Menschen sein. [Um homem de verdade tem de ficar distante dos homens.21] Num mundo tão irrestritamente comum, todo aquele que forextraordinário irá necessariamente se isolar, e de fato se isola. Quanto maiso homem se isola da companhia dos homens, melhor se sente. Como osfamintos que recusam um alimento estragado ou envenenado, assimtambém devem proceder os homens que sentem falta de companhia, emrelação aos demais homens, considerando o que são. Uma felicidade grandee rara é, portanto, possuir tanto em si que não se é impulsionado pelo fastiointerior ou pelo tédio a procurar a companhia dos homens, sobre os quaisaté mesmo o nobre e brando Petrarca disse:
Non enim vile tantummodo foedumque, sed (quod invitus dico, quodque utinam non tam late notum experientia fecisset, assidueque faceret,) perniciosum quoque, varium et infidum et anceps et ferox et cruentum animal est homo! (De vita solitaria, prefácio) [Pois o homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem dera a experiência não o tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não continuasse a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e cruel.22]................... 20. Cf. Giordano Bruno, Opere, ed. de A. Wagner, Leipzig, Weidmann, 1830, vol. II, p. 408. 21. Christian Ewald von Kleist, Sehnsucht nach Ruhe, vol. 120, in: Sämtliche Werke, Karlsruhe,Schmieder, 1776, 1a parte, p. 102. 22. Em seu exemplar de uso Schopenhauer sublinhou a passagem: Francesco Petrarca, De vitasolitaria, Bern, Joannes le Preux, 1605, p. 14.
19 O que sempre e em toda parte me surpreendeu na vida real é que, até aidade avançada, nunca consegui formar uma noção razoável da pequenez eda miséria do ser humano23.................... 23. Cf. Spicilegia (1839), p. 145, in: Der handschriftliche Nachlaß, vol. IV/1, p. 257.
20 Em todos os tempos existiu nas nações civilizadas uma espécie demonge natural, pessoas que, conscientes de suas faculdades espirituaissobressalentes, antepuseram a formação e o cultivo de tais faculdades aqualquer outro bem e, assim, levaram uma vida contemplativa, espiritual,cujos frutos se tornaram depois patrimônio da humanidade. Emconformidade com isso renunciaram à riqueza, à posse, à aparênciamundana, a ter uma família própria: assim o quis a lei da compensação.Embora pertençam à classe hierarquicamente mais nobre da humanidade,cujo reconhecimento é uma honra para qualquer um, renunciam à distinçãomundana com uma humildade análoga à do monge. O mundo é o seumosteiro, o seu eremitério. – O que alguém pode ser para outrem possui umlimite bem estreito: no final cada um é e permanece só. E isso depende doseguinte: quem está só. Se eu fosse um rei, para me autopreservar dariasempre e expressamente a seguinte ordem: deixem-me sozinho! Homens deminha espécie deveriam viver com a ilusão de serem o único ser em umplaneta despovoado a fazer da necessidade uma virtude. A maioria daspessoas também nota, no primeiro contato comigo, que nada possosignificar para elas, e vice-versa. De posse de um elevado grau deconsciência, portanto, de uma existência superior, minha sabedoria de vidaé conservar de maneira pura e vívida a fruição dessa existência, e para talfim nada pretender além disso. Teremos conquistado o bastante se, com aidade e a experiência, finalmente alcançarmos uma vue nette, uma visãoaguçada de toda a miséria moral e intelectual do ser humano em geral, poisnão tentaremos nos envolver com ele mais do que o necessário, não maisviveremos numa luta constante como a luta entre a sede, de um lado, e, dooutro, um chá nauseabundo para doentes, não mais nos deixaremos seduzirpela tentação de criar ilusões e assim pensar os homens conforme osdesejamos, mas sempre teremos diante dos olhos o que eles de fato são. Porconseqüência, também vale aqui:
Optimus ille animi vindex laedentia pectus, Vincula qui rupit dedoluitque semel. Ovídio, Remedia amoris, vs. 293-4 [O melhor liberador da alma é o que, para sempre, Rompeu as correntes que oprimiam o coração.] Acostumei-me a suportar demasiado os homens porque cedocompreendi que teria de fazê-lo, caso de algum modo quisesse lidar comeles. Todavia esta máxima nasceu de um jovem carente de relações.Experiência e maturidade tornam tais relações dispensáveis, e seria toloainda adquiri-las ao custo de paciência sem limites. Antes tem-se deabandonar esse povo, como diz Goethe, a Deus, a si mesmo, ao diabo24.Caso não se queira ser um joguete nas mãos de qualquer patife e objeto dechacota de qualquer imbecil, então a primeira regra é: retrair-se! O que umhomem de minha espécie pensa e sente não tem semelhança alguma com oque as pessoas ordinárias pensam e sentem. Eis por que me convémpermanecer hermeticamente fechado em mim mesmo. O tom mais corretodiante delas é a ironia; mas uma ironia sem nenhuma afetação, uma ironiacalma, que não traia a si mesma. Nunca se deve direcioná-la diretamente àpessoa com quem se conversa. Não cessar de praticá-la: eis o que considerouma vitória particular. Temos de nos acostumar a ouvir tudo – até aquiloque mais poderia nos enfurecer – de maneira bastante serena, e com issoponderar os absurdos do interlocutor e de suas opiniões, sempre evitandoqualquer conflito. Tempos depois pensaremos na cena com satisfaçãopessoal. Continuamente devemos manter o olhar direcionado ao todo, pois,caso nos detenhamos no particular, com facilidade erraremos, e obteremosapenas uma visão falsa das coisas. Não se pode julgar o curso de um rio apartir desta ou daquela curva. O sucesso ou fracasso do momento e aimpressão que deixam não devem ser levados em conta. A partir da condutados outros em relação a nós não devemos aprender e corrigir o que somos,mas antes aprender quem eles são. Neste último caso podemos observarfriamente; no primeiro não. Quando duas pessoas conversam, cada uma fazsecretamente uma certa zombaria da outra. Portanto, em cada momento defria razão sempre lembraremos com uma sensação de triunfo cada momentode ironia, com vergonha cada efusão sentimental. Jamais devemos ceder à
vontade de falar apenas por falar, visto que a tagarelice torna-se franquezado coração. Basta observar quão diferentes são as expressões feitas por umapessoa quando nos ouve e quando nos fala.................... 24. Cf. Goethe, Hypochonder, in: Werke. Hamburger Ausgabe, vol. I, p. 133: Der Teufel hol’ das Menschengeschlecht! Man möchte rasend werden! Da Nehm ich mir so eifrig vor: Will Niemand weiter sehen Und all das Volk Gott und sich selbst Und dem Teufel überlassen! Und kaum seh ich ein Menschengesicht, So hab’ich’s wieder lieb. [Ao diabo o gênero humano! Que fúria sinto! Com fervor me proponho agora A ninguém mais ver E todo esse povo abandono a Deus, A si mesmo, ao diabo! Mas assim que vejo uma face humana – volta de novo o amor.]
21 Visto que com o aumento da intimidade diminui o respeito, já que asnaturezas ordinárias costumam desprezar tudo o que não lhes é difícil obter,então, contrariando a inclinação natural à sociabilidade, temos de nosesforçar por economizar ao máximo possível tal sociabilidade… A regra 177 de Gracián: “evitar demasiada intimidade no trato”25. Virtues, like essences, lose their fragrance when exposed. They are sensitive plants, which will not bear too familiar approaches. William Shenstone, Essays on Men and Manners, Londres, J. Cundee, 1802, pp. 41, 163 [Virtudes, assim como essências, perdem sua fragrância quando são expostas. São plantas sensíveis que não suportam o contato demasiado íntimo.]................... 25. Cf. Oráculo manual y arte de prudencia, que Schopenhauer verteu para o alemão. Cf. aindaDer handschriftliche Nachlaß, vol. IV/2, p. 264.
22 Tão logo comecei a pensar, entrei em discórdia com o mundo. Najuventude amiúde ficava amedrontado, pois supunha que a razão estavacom a maioria. Helvetius foi quem primeiro me alertou. Então, após cadanovo conflito, o mundo perdia cada vez mais, e eu cada vez mais ganhava.Ao ultrapassar a casa dos quarenta anos ganhei o processo em últimainstância, e assim encontrei-me superiormente posicionado, mais do quejamais suspeitava. No entanto, o mundo tornou-se para mim vazio e ermo.Durante toda a minha vida senti-me terrivelmente só, e no fundo do peitosempre suspirei:Jetzt gieb mir einen Menschen! Schiller, Don Carlos, III, 5, v. 2808[Agora me dêem um ser humano!] Em vão. Permaneci só. Todavia, com toda sinceridade posso dizer quenão foi por minha culpa. Jamais encontrei alguém que, em espírito ecoração, fosse de fato um ser humano. Nada encontrei senão miseráveissofríveis, de cabeça limitada, coração ruim, sentimentos vis: exceção feita aGoethe, Fernow, decerto F. A. Wolf e alguns poucos outros, todos porémentre vinte e cinco até quarenta anos mais velhos que eu. Gradualmente odissabor com os indivíduos teve de ceder lugar ao sereno desprezo pelotodo. Cedo tornei-me consciente da diferença entre mim e os homens.Todavia pensava: basta conhecer cem pessoas e encontrarei um ser humanodigno – debalde; então basta conhecer mil – debalde; por fim pensei quetinha, sim, de aparecer alguém, ainda que fosse entre muitos milhares.Desisti. Enfim compreendi que a natureza é ainda mais infinitamenteparcimoniosa, e tenho de suportar com dignidade e paciência a “solitude ofkings”, a solidão dos reis (Byron)26.
................... 26. Nos “Complementos” a O mundo como vontade e representação, livro I, cap. 15,Schopenhauer apresenta a citação completa:To feel me in the solitude of kings, Byron, Prophecy of Dante, I, v. 166Without the power that makes them bear a crown.[Sentir a solidão dos reis,Porém, sem o poder que lhes permite uma coroa.]
23 The more I see of men, the less I like them; if I could but say so ofwomen too, all would be well. Th. Moore, Letters and Journals of Lord Byron with Notices of his Life, Bruxelas-Paris, A. et W. Galignani, 1830, I, 499 [Quanto mais observo os homens, menos gosto deles; se ao menos eupudesse dizer o mesmo das mulheres, tudo estaria bem.]
24 Em favor do matrimônio permanece por fim somente a consideração deque seremos cuidados na velhice e na doença, e teremos assim um cantinhopróprio. Mas mesmo essas vantagens me parecem ilusórias. Por acasominha mãe cuidou de meu pai quando ele adoeceu? As boas-vindas maiscordiais não nos são dadas talvez num hotel? Não é toda esta vida umdiversorium, uma simples hospedagem? Embora por um lado também tenhadúvidas se o modo de vida reservado, que homens como eu precisam, sejamais fácil no matrimônio que no celibato, por outro reconheço que, paramim, este último modo de vida se tornou impositivo, já que, por umexercício íntimo de consciência moral, não senti em mim a coragem nem acapacidade ou o chamado para carregar comigo o fardo do matrimônio. Emmim, a todo tempo, predominaram sensibilidade e intelectualidade. Porconta disso, a todo tempo fui intensamente receptivo para o padecimento eas adversidades da vida, já suas alegrias e gozos, ao contrário,proporcionalmente falando, me comoveram menos. Por isso, desde ajuventude, os meussonhos de felicidade sempre tiveram por base cenas deretraimento, paz, solidão, gozo das minhas faculdades. Se minha vida realtivesse sido a coisa principal em minha existência e a fonte dos meusprazeres, teria de bom grado me esforçado por casar; mas como, aocontrário, minha vida foi algo ideal, intelectual, não me permiti omatrimônio, pois uma das duas coisas tem de ser sacrificada em favor daoutra. A um homem que abandonou o caminho natural da vida, não importa omotivo, jamais é permitido casar. Quem não tem trabalho remunerado nãotem raiz fixa na terra, uma tempestade pode abatê-lo; tem por isso depermanecer só. A aventura de viver sem trabalho e com posses modestas sópode ser empreendida no celibato. A perda da livre disposição sobre minhaprópria pessoa é um mal bem maior que a vantagem, para mim, daconquista de outrem. Ademais, seria absolutamente impossível eu conseguirser feliz com uma mulher que, por sua vez, não fosse feliz comigo, pois
vivo principalmente em meu mundo de pensamentos e não gosto decompanhia, diversões, sem falar que nem sempre estou de bom humor. Deforma que resta pouca esperança de uma mulher vir a sentir-se feliz comigo. Como vejo o intuito propriamente dito de minha vida situar-se paraalém dos limites de minha existência pessoal, que me foi apenas o meiopara chegar a ele, o mais importante e mais incomum seria sacrificado aocomum se a minha pessoa e posses não estivessem completamente ao meudispor, mas fossem compartilhadas com outrem. Para assegurar-me essaposse livre e ilimitada de mim mesmo renuncio à posse de qualquer outrapessoa. Pois se esta deve me pertencer, tenho de pertencer a ela. Considero minha herança como um tesouro sagrado, que me é confiadoapenas para resolver a tarefa que a natureza me colocou, e assim poder ser,para mim mesmo e para a humanidade, o que naturalmente me foideterminado. É uma espécie de carta de alforria sem a qual eu seria inútilpara a humanidade, e talvez tivesse a existência mais miserável que umapessoa de minha espécie jamais teve. Por isso julguei que seria o abusomais ingrato e mais indigno de um destino tão raro como esse, se eu, naexpectativa tão freqüentemente enganosa de uma vida rica em gozos,quisesse talvez despender a metade de meus proventos em lojas de roupa,alfaiates e modistas. Quanto mais sensato e sábio alguém é, tanto piores são seusrelacionamentos com a metade insensata da humanidade, e com razão, poistais relacionamentos seriam uma imbecilidade maior ainda de sua parte. Sealguém completou quarenta anos sem ter se sobrecarregado com esposa efilhos e, apesar disso, ainda os queira, deve ter pouco aprendido. Tal pessoaassemelha-se àquela que, já tendo percorrido a pé três quartos do caminhoaté a estação do correio, ainda quisesse gastar um bilhete para o resto dotrajeto. He that hath wife and children, hath given hostages to Fortune, for theyare impediments to great enterprises, either of virtue or mischief. Certainlythe best works and of greatest merit for the public have proceeded from theunmarried or childless men, which both in affection and means havemarried and endowed the public. Bacon, Essay of Marriage and Single Life27
[Quem tem esposa e filhos tornou-se refém do destino, pois eles sãoimpedimentos para grandes tarefas, sejam virtuosas ou infaustas. Decerto asmelhores obras e as de maior valor para o público foram produzidas porhomens solteiros e sem filhos, que com paixão e meios casaram-se com opúblico.]................... 27. Schopenhauer sublinhou a passagem em seu exemplar de uso da obra: Francis Bacon, TheEssays, or Council, Civil and Moral, Londres, H. Clark, 1718, p. 17.
25 A maioria dos homens deixa-se seduzir por um belo rosto, visto que anatureza os induz a possuir mulheres, na medida em que mostra todo oesplendor delas ou deixa atuar… um “efeito teatral”. Todavia, escondemuitos males que elas trazem consigo: gastos sem fim, cuidados com aprole, indocilidade, teimosia, envelhecimento e perda da beleza em poucosanos, mentiras, cornos no marido, caprichos, ataques histéricos, amantes, eoutras coisas mais do inferno e do diabo. Eis por que denomino omatrimônio uma dívida contraída na juventude e paga na velhice. Sirvo-meaqui de Baltasar Gracián, que chama de camelo um homem de quarentaanos com esposa e filhos; pois de fato o fim comum da assim chamadacarreira dos homens jovens é apenas tornar-se burro de carga de umamulher. Dentre os melhores deles, a mulher, via de regra, passa como umpecado da juventude. O ócio livre que empregam o dia todo para conquistara sua mulher é um bem de que o filósofo necessita. O homem casadocarrega todo o fardo da vida, o celibatário apenas a metade: quem seconsagra às musas tem de pertencer a esta última classe. Daí notar-se quequase todos os filósofos de verdade permaneceram solteiros: Descartes,Leibniz, Malebranche, Espinosa, Kant. Os antigos não podem ser aquicomputados, já que entre eles a mulher ocupava uma posição subalterna;ademais é conhecido o sofrimento de Sócrates, e Aristóteles foi umcortesão. Os grandes poetas, ao contrário, eram todos casados e de fatopessoas infelizes. Shakespeare ganhou até mesmo duplo par de cornos.Maridos são amiúde um Papageno às avessas: este, com admirável rapidez,transforma uma velha em uma jovem; de maneira similar o marido, comgrande rapidez, transforma uma jovem em uma velha.
26 Matrimony = war and want! Single blessedness = peace and plenty. [Matrimônio = guerra e escassez! Sina do solteiro = paz e abundância.28] Até mesmo o cantor laureado do amor diz: quisquis requiem quaeris, foeminam cave, perpetuam officinam litium ac laborum. Petrarca, De vita solitaria, livro II, seção III, cap. 3 [quem procura paz, que evite a mulher, fonte perpétua de conflito e dor de cabeça.29]................... 28. O próprio Schopenhauer formulou em inglês a máxima, numa carta a David Asher, datadade 4 de novembro de 1858: “To marry or not, is the question – Question?!! I’ll give you a soundmaxim of my own making, thought it’s in English: ‘matrimony = war and want! Single blessedness =peace and plenty.’ Stick to that. This, by the bye, is an Alliteration; the Germans call it a Staffrime.But what’s that to us?” [Casar ou não casar, eis a questão. Questão?!! Vou dar-lhe um ditadoincontestável de minha própria autoria, um pensamento em inglês: matrimônio = guerra e escassez.Sina do solteiro = paz e abundância. Abracem esta idéia. Isto, aliás, é uma aliteração: os alemãeschamam-na rima fixa. Mas o que significa para nós?] (A. Schopenhauer, Gesammelte Briefe, p. 438.) 29. No seu exemplar de uso Schopenhauer grifou a passagem com caneta: F. Petrarca, De vitasolitaria, p. 142.